O Biodiesel é Inflacionário?
O biodiesel é um biocombustível substituto parcial ou total do diesel mineral produzido a partir de matérias graxas, sejam elas óleos vegetais, gorduras animais ou óleos residuais de fritura. Trata-se, portanto, de um produto capaz de reciclar resíduos, como são as duas últimas matérias primas mencionadas, ou de agregar valor aos óleos puros, ou seja, aqueles extraídos de grãos oleaginosos.
Neste artigo, iremos avaliar a relação com os óleos vegetais, produtos derivados da soja, do caroço de algodão e da palma e que correspondem a mais de 80% das matérias primas atualmente empregadas na produção de biodiesel. A demanda por essas matérias primas impacta significativamente a composição de receitas do esmagamento de oleaginosas, razão pela qual tem efeitos importantes sobre os demais coprodutos obtidos a partir dessa etapa industrial.
De fato, existem diversos produtos derivados do esmagamento e o farelo é o principal deles. Na soja, por exemplo, corresponde a quase 80% da massa gerada, enquanto o óleo corresponde ao restante. O farelo é a parcela rica em nutrientes essenciais para a produção de rações animais e que foi responsável por parte considerável dos ganhos de produtividade na produção de proteínas animais verificadas nas últimas décadas. Assim, essa relação merece maior atenção, especialmente em função do seu potencial para as políticas públicas, e para isso é fundamental entender se, como e em que medida a maior demanda por óleo vegetal, como é o caso do biodiesel, impacta o farelo nos seus aspectos de oferta e preços.
Para responder a essas perguntas, partimos da comparação entre o comportamento do esmagamento de soja antes e depois do estabelecimento da mistura obrigatória de biodiesel no diesel rodoviário brasileiro. Iniciada com 2% em janeiro de 2008, cresceu gradualmente e chegou a 13% em meados de 2021, sendo reduzida para 10% em 2022. Durante esse processo, demandou quantidades crescentes de óleo de soja, partindo de 800 mil t em 2008 e superando 4,9 milhões de toneladas em 2021. Em 2022, consumiu 4,2 milhões de toneladas dessa matéria prima.
Obviamente, o biodiesel teve um efeito inegável sobre a demanda de óleo de soja brasileiro. Entretanto, o esmagamento cresceu também em função das demandas internas e externas por farelo e óleo de soja para fins alimentares e industriais. Para responder sobre seu possível efeito sobre o farelo, é necessário entender se a demanda da indústria de biodiesel aumentou o esmagamento acima do tendencial.
Com base nesse raciocínio, estimou-se cada um desses componentes e pôde-se constatar que a demanda do biodiesel efetivamente produziu uma aceleração do esmagamento histórico e que, de 2008 a 2022, mais de 90 milhões de t de soja decorreram desse consumo. Ou seja, com o crescimento do esmagamento acima do tendencial, mais de 72 milhões de toneladas de farelo de soja foram disponibilizadas no mercado brasileiro em função de condições econômicas criadas pelo programa de biodiesel. Considerando a proporção de cerca de 22% de farelo nas rações, concluímos que 327 milhões de t de rações animais foram positivamente influenciadas pelo biodiesel.
Finalmente, avaliamos se esse aumento da oferta de farelo teve algum efeito sobre seus preços internos. Para isso, decompusemos os preços internos em suas partes internacional, que reflete a Bolsa de Chicago, e nos prêmios de ajuste do mercado doméstico, baseados nas condições de oferta e demanda, logística etc. Nessa etapa, confirmamos a relação inversa entre o prêmio doméstico e a oferta, ou seja, o excedente gerado contribuiu para arrefecer os preços no mercado interno em relação à paridade de exportação.
A etapa final consistiu em avaliar os efeitos de cada ponto percentual adicional de biodiesel no diesel rodoviário a partir do B10. Neste caso, estimou-se que esse efeito pode gerar redução dos custos de produção de proteínas animais, em especial as carnes de aves, suínos, ovos e peixes, entre R$ 3,3 e R$ 3,5 bilhões por ano e que essa redução reverte em uma queda equivalente a 0,05 p.p. do IPCA.
O consumidor brasileiro, portanto, tem ganhos expressivos com a redução de preços de itens da cesta básica. Além disso, milhares de empregos diretos e indiretos podem ser gerados nesse processo tanto nas atividades de produção direta, quanto nos serviços relacionados, aumentando a renda da sociedade. Também se fortalece o setor exportador ao ganhar competitividade frente aos demais concorrentes.
É importante que as decisões sobre o teor de biodiesel sopesem cuidadosamente esses efeitos. Entre 2021 e 2022, o percentual de mistura foi decidido unicamente em função de cálculos do impacto do biodiesel no diesel comercial na bomba. Ainda assim, não foram poucos os alertas de que mesmo esses cálculos superestimavam esse efeito, dado que comparavam o biodiesel com o preço médio do diesel mineral e não com seu efetivo substituto, o diesel mineral importado, dado que as refinarias brasileiras vendem a preços mais baixos. Vale destacar que outros efeitos não mensurados também merecem consideração e estudos futuros, tal como a maior oferta de glicerol, a redução de doenças respiratórias pela melhoria da qualidade do ar, a diminuição das despesas públicas com a limpeza da água e solo pela reciclagem de resíduos, a diminuição das emissões de Gases de Efeito Estufa entre 70% e 90% e a menor dependência energética.
Neste momento, passadas as fortes elevações dos preços dos óleos vegetais no mundo, cabe reavaliar os efeitos sobre os preços do diesel comercial de forma adequada e com a devida consideração dos demais efeitos sobre os itens que compõem a cesta de consumo. Em se tratando de efeitos inflacionários, qualquer decisão deve considerar todos os elementos para se mensurar o resultado líquido.
Nesse sentido, um processo que reflita adequadamente esses pontos certamente produzirá decisões ponderadas e que melhor atendam ao interesse público geral. O uso das energias renováveis é um caminho que o Brasil escolheu e a devida incorporação de todos os efeitos indiretos tem o potencial de fortalecê-lo. Na matriz de veículos diesel, biodiesel é aliado da produção de alimentos.
André Nassar
Presidente Executivo da ABIOVE
Daniel Furlan Amaral
Diretor de Economia e Assuntos Regulatórios da ABIOVE